Não, não chegou a doer. Ao contrário, a despeito de todo o sangue espirrado, parede, cama, lençol, cobertor, travesseiro, e não só sangue, mas carne, nervos, miolos, uma disforme massa acinzentada e inúmeros fragmentos de ossos, a sensação era de um inequívoco alívio. Eu ainda me mexia, pulsava, respirava, suava, mas não, dor não sentia. Aos poucos, muito aos poucos, vinha então afinal levantando-me de mim mesmo, e logo já não apenas não sentia o meu corpo, mas de fora dele o observava. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que eu inerte ali ficava, ia-me. É, sim, eu vinha. Intrigante. Como em todos os momentos da minha vida, agora, no último, contradição. Dúvida, dois, dialética, divisão. Aos poucos eu não era mais eu, e, também, e também aos poucos, eu já então era só eu, mas já sem o que de mim em mim mesmo nunca fora.
Subi, subi, subi, subi, subi. Ficava lá o corpo e eu subia. Voava, olhava. Agora já sobre a cama nenhum movimento. Um pulso, outro, mais um, mais outro, e o último. Expiração. Foi-se, fui-me, vim. Dez metros, quinze, vinte, cem, o céu. E lá, sobre a cama, o corpo. Nu apesar do frio, como fiz questão. Vim nu, quis ir nu. Ou, ao contrário, dúvida, dialética, nu fui e nu agora venho. Na mão direita, ao lado da cabeça, a arma quente. O sangue espirrado, parede, cama, janela. Os olhos turvos que não cheguei a fechar. Não sei com certeza se a bala me transpassou. Quer parecer que sim. Talvez haja dela fragmentos entre os ossos. Não sei. Refaço os passos, os últimos momentos. Ela, a bala, ela, a breve carta, a minha nudez, roupas no chão, o gris da tarde invadindo a janela, e eu na cama, e ela, a arma, revólver, dedo, crânio, medo, coragem, tiro, som. Mas não. Dor não. Alívio, lívido, livre, leve. Subindo, subindo, subindo.
Fui, vim, cá afinal estou. E que ninguém por mim sinta qualquer dor. Ou que todos, de algum modo, sintam enfim por mim esta não dor que agora eu sinto. É. Fui, vim, já estou aqui. Sim, consegui.
Subi, subi, subi, subi, subi. Ficava lá o corpo e eu subia. Voava, olhava. Agora já sobre a cama nenhum movimento. Um pulso, outro, mais um, mais outro, e o último. Expiração. Foi-se, fui-me, vim. Dez metros, quinze, vinte, cem, o céu. E lá, sobre a cama, o corpo. Nu apesar do frio, como fiz questão. Vim nu, quis ir nu. Ou, ao contrário, dúvida, dialética, nu fui e nu agora venho. Na mão direita, ao lado da cabeça, a arma quente. O sangue espirrado, parede, cama, janela. Os olhos turvos que não cheguei a fechar. Não sei com certeza se a bala me transpassou. Quer parecer que sim. Talvez haja dela fragmentos entre os ossos. Não sei. Refaço os passos, os últimos momentos. Ela, a bala, ela, a breve carta, a minha nudez, roupas no chão, o gris da tarde invadindo a janela, e eu na cama, e ela, a arma, revólver, dedo, crânio, medo, coragem, tiro, som. Mas não. Dor não. Alívio, lívido, livre, leve. Subindo, subindo, subindo.
Fui, vim, cá afinal estou. E que ninguém por mim sinta qualquer dor. Ou que todos, de algum modo, sintam enfim por mim esta não dor que agora eu sinto. É. Fui, vim, já estou aqui. Sim, consegui.
Gugu Keller
A vida, às vezes, já nos suicida tanto diariamente... em sonhos e expectativas... que acho nem deveríamos pensar precisar em outro instrumento menos eficaz... que o faz logo de uma só vez...
ResponderExcluirE depois?... Como se aguenta uma eternidade, sem pensar em fazer o que ainda não foi feito... e ficar ali... sossegaditos, agarrados à consequência do que se fez, e não se pode desfazer?... Digo eu... que tenho a impressão, que não vou ter paciência, para morrer por muito tempo... quando chegar a minha vez... até porque não consigo ficar parada por muito tempo... começa-me logo a doer qualquer coisita!... :-))
E deve ser isso, que se calhar é a missão de uma vida inteira... aprender a renascer a cada dia... na sua própria vida... porque renascer noutra vida... sem se ter aproveitado ao máximo a anterior... provavelmente, leva-nos a repetir de novo os mesmos erros, na vida seguinte... e repetir erros, sem evoluir... é que será um verdadeiro suicídio!...
Engraçado!... A gente nasce de dor... morre de dor, a maior parte das vezes, se não se ficar dormindo... mas nem todos sabem conviver com a dor, ao longo da vida... e se pensarmos bem... só a dor, nos mostra que estamos vivos... porque sentimos... depois... há uma grande maioria... os insensíveis... que já nasceram mortos sem saber... também terão uma existência triste... não sentir nada... também deve ser bem duro... deve ser um tédio permanente!...
Não admira, que haja tanta gente aborrecida!... :-D
Por isso... acho que sempre será melhor, ir-se sentindo qualquer coisita... sempre será uma existência mais preenchida... e abarca uma infinidade de possibilidades... desde uma unha encravada... a um acontecimento bem dramático que nos deixou marca, no corpo ou na alma... sinal de que vivemos tal acontecimento... e que o mesmo não nos passou ao lado... porque estávamos lá... para o melhor e o pior...
Um belíssimo e emotivo texto, que de facto, nos desvenda um pouco do atormentado mundo, de quem pensa cometer tal acto... e que infelizmente... parece-me que cada vez serão mais, os que pensam em tal, nos tempos que correm... em que as pessoas, não lidam bem, com os seus problemas... porque o mundo, também nos enche de sinais, à nossa volta... de que tudo deve ser perfeito, ao máximo... desde a beleza ideal... ao carro ideal... à vida ideal... enfim!...
Manter a individualidade, para lá da engrenagem do marketing de modas, tendências, e ideais... não será mesmo nada fácil, para alguns...
Passei de novo, por aqui, Gugu... porque no outro dia, me esqueci de perguntar, se de quando em vez, poderei destacar, uma ou outra das suas fantásticas citações, lá no meu canto, com o respectivo link para aqui, pois claro... do jeito... que lá está, presentemente, no meu último post!...
Um grande abraço!... E após as minhas férias, quando tornar a postar mais frequentemente... por aqui estarei de novo... com as minhas teorias... para as quais, nem Freud arranjaria explicação... e ficaria igualmente deprimido!... :-P
Tudo de bom!
Ana
Obrigadíssimo, Ana, pelo maravilhoso comentário! Costumo dizer que, masoquistas que somos, optamos pelo suicídio gradativo e doloroso de continuarmos vivos. De todo modo, até por ser entre nós um gigantesco tabu, trata-se de um tema com uma riqueza simbólica ímpar, não acha? Quanto a citar meus modestos textos no teu espaço, ou nele criar um link para cá, fico imensamente honrado e agradecido. Desejo-te boas férias! Ai... Falar nisso, as minhas estão acabando hoje, ou seja, depressão total... Mas é assim mesmo.
ResponderExcluirGK