Eram quase onze da manhã de ontem, terça-feira, dia 13. Chovia e fazia muito frio quando saí do metrô na praça da Sé, bem ao lado do tribunal. Entrei no "Empório Doce" e comprei um pacote de bolachas e duas garrafas de "H2Oh", coisas de que gosto para "beliscar" durante o dia.
Bem agasalhado e sob um guarda-chuva aberto, dirigi-me para a entrada do prédio, até que, tímido, encharcado, assustado, decerto faminto e trêmulo de frio, eu o avistei com as orelhas de pé a observar a escadaria. Um cão. Um vira-lata marrom claro de porte médio, magro de uma magreza a deixar evidentes os ossos do seu tórax, as suas vértebras. Quieto, parado, com uma expressão de tristeza intensa, de um desespero contido porém dilacerante, ele fitava os passantes com o que parecia um fio de esperança em receber alguma migalha, fosse de algo comestível, fosse ao menos de alguma forma, ainda que breve, de atenção. Aproximei-me e recebi de soslaio um olhar penetrante, que de pronto me atravessou as vísceras, tocando-me a alma. Era um olhar de quem só pedia uma chance, um alento, apenas um pouco de algum alívio, qualquer que fosse, um olhar de quem apenas pedia para conhecer um pouquinho desta vida sem todo o tempo tanta dor e privação.
Assobiei e ele aprumou ainda mais as orelhas. Eu tinha que fazer alguma coisa. Enfiei a mão no saco plástico do "Empório Doce" e peguei o pacote de bolachas. Abri e dei-lhe uma. Ele cheirou e a comeu com voracidade, como se agora mastigasse, doce, uma preciosa chance de mais um pouco de sobrevivência, esse instinto então já para mim tão racionalmente questionável. Dei-lhe outra, e outra, e outra. Precisava entrar. Sou funcionário público e tenho que "bater" o ponto. Estava em cima da hora. Ele comia. Despejei então todo o pacote. Até cheguei a pensar que lhe poderia fazer mal se comesse tudo, já que eram das recheadas de chocolate. Mas preferi correr o risco. Depois de ver aqueles olhos, aquele frágil corpo ali tremendo, aquele tão dolorido apelo de quem nem sequer tem como falar, pareceu-me a única coisa a fazer...
Subi as escadas. Ainda olhei para trás e o vi pela última vez dando cabo energicamente das bolachas no chão molhado diante de si. Fui-me. Mas, mesmo feliz por lhe ter talvez aliviado um pouco a fome, eu me sentia meio que envergonhado em meu íntimo... Eu podia ter ido comprar mais comida para ele, um salgadinho talvez, um sanduíche, um bife, um prato completo, o que fosse... Eu podia trazê-lo para a minha casa, dar-lhe um banho quente e um lugar aconchegante para dormir... Eu podia abraçá-lo, beijá-lo e fazê-lo sentir que agora ele teria alguém que cuidaria dele e que nunca mais lhe deixaria faltar nada, que nunca mais ele passaria nenhuma necessidade... Mas não! Não fiz nada disso! Mesmo que financeiramente não me fizesse nenhuma diferença acolhê-lo, e, pior, mesmo que meu coração até me dissesse para o fazer, acabei optando por não abrir mão da minha tão confortável rotina. Afinal, moramos em apartamento e já temos uma cadela... Como aparecer com outro assim? É... Sou mesmo egoísta demais para isso... Se ele estivesse a ponto de morrer de fome, eu talvez o tenha salvo com aquelas bolachas, mas por quanto tempo? É... Ele lá ficou e eu segui escada acima... Covarde e omissivamente deixei-o para trás...
Foi um dia tão amargo para mim... Um amargor que nem todas as bolachas de chocolate do mundo tirariam da minha boca... Será que voltarei e vê-lo? E, se voltar, farei enfim o que o meu próprio coração me ordena? Provavelmente não... Querem saber? Odeio-me! Desprezo-me! Abomino-me! Envergonho-me de meu comodismo, de minha hipocrisia, de minha omissão!
Hoje, quarta-feira, dia 14, também chovia e fazia frio de manhã... Mas ele não estava lá...
Bem agasalhado e sob um guarda-chuva aberto, dirigi-me para a entrada do prédio, até que, tímido, encharcado, assustado, decerto faminto e trêmulo de frio, eu o avistei com as orelhas de pé a observar a escadaria. Um cão. Um vira-lata marrom claro de porte médio, magro de uma magreza a deixar evidentes os ossos do seu tórax, as suas vértebras. Quieto, parado, com uma expressão de tristeza intensa, de um desespero contido porém dilacerante, ele fitava os passantes com o que parecia um fio de esperança em receber alguma migalha, fosse de algo comestível, fosse ao menos de alguma forma, ainda que breve, de atenção. Aproximei-me e recebi de soslaio um olhar penetrante, que de pronto me atravessou as vísceras, tocando-me a alma. Era um olhar de quem só pedia uma chance, um alento, apenas um pouco de algum alívio, qualquer que fosse, um olhar de quem apenas pedia para conhecer um pouquinho desta vida sem todo o tempo tanta dor e privação.
Assobiei e ele aprumou ainda mais as orelhas. Eu tinha que fazer alguma coisa. Enfiei a mão no saco plástico do "Empório Doce" e peguei o pacote de bolachas. Abri e dei-lhe uma. Ele cheirou e a comeu com voracidade, como se agora mastigasse, doce, uma preciosa chance de mais um pouco de sobrevivência, esse instinto então já para mim tão racionalmente questionável. Dei-lhe outra, e outra, e outra. Precisava entrar. Sou funcionário público e tenho que "bater" o ponto. Estava em cima da hora. Ele comia. Despejei então todo o pacote. Até cheguei a pensar que lhe poderia fazer mal se comesse tudo, já que eram das recheadas de chocolate. Mas preferi correr o risco. Depois de ver aqueles olhos, aquele frágil corpo ali tremendo, aquele tão dolorido apelo de quem nem sequer tem como falar, pareceu-me a única coisa a fazer...
Subi as escadas. Ainda olhei para trás e o vi pela última vez dando cabo energicamente das bolachas no chão molhado diante de si. Fui-me. Mas, mesmo feliz por lhe ter talvez aliviado um pouco a fome, eu me sentia meio que envergonhado em meu íntimo... Eu podia ter ido comprar mais comida para ele, um salgadinho talvez, um sanduíche, um bife, um prato completo, o que fosse... Eu podia trazê-lo para a minha casa, dar-lhe um banho quente e um lugar aconchegante para dormir... Eu podia abraçá-lo, beijá-lo e fazê-lo sentir que agora ele teria alguém que cuidaria dele e que nunca mais lhe deixaria faltar nada, que nunca mais ele passaria nenhuma necessidade... Mas não! Não fiz nada disso! Mesmo que financeiramente não me fizesse nenhuma diferença acolhê-lo, e, pior, mesmo que meu coração até me dissesse para o fazer, acabei optando por não abrir mão da minha tão confortável rotina. Afinal, moramos em apartamento e já temos uma cadela... Como aparecer com outro assim? É... Sou mesmo egoísta demais para isso... Se ele estivesse a ponto de morrer de fome, eu talvez o tenha salvo com aquelas bolachas, mas por quanto tempo? É... Ele lá ficou e eu segui escada acima... Covarde e omissivamente deixei-o para trás...
Foi um dia tão amargo para mim... Um amargor que nem todas as bolachas de chocolate do mundo tirariam da minha boca... Será que voltarei e vê-lo? E, se voltar, farei enfim o que o meu próprio coração me ordena? Provavelmente não... Querem saber? Odeio-me! Desprezo-me! Abomino-me! Envergonho-me de meu comodismo, de minha hipocrisia, de minha omissão!
Hoje, quarta-feira, dia 14, também chovia e fazia frio de manhã... Mas ele não estava lá...
Gugu Keller
Ai Gugu, eu fiquei triste também só de imaginar a cena. Mas não se sinta culpado. Tem coisas que não é possível mudar, apenas se conformar. Saber que tem tantos animais na rua é uma delas.
ResponderExcluirBeijos
Samieh Saleh
Ah, vou te contar, hoje fiquei com ódio de vc ! Fala sério ! Mas tudo bem, isso infelizmente acontece com pessoas que gostam dos animais, já passei por isso, meu único consolo é pensar que talvez alguém pode ter sido mais generoso do que eu e ter salvo o animal. Espero que tenha sido esse o caso (ah, eu sempre carrego umas bolsinhas pequenas de comida, de ração, por já ter passado por isso várias vezes) Beijo
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