Esta é uma história muito importante para mim mas, curiosamente, apesar de já ter acontecido há algum tempo, apenas hoje tive a idéia de a postar aqui para compartilhá-la com os amigos...
Perdi meu pai no dia 13 de julho de 1974, quando eu tinha 9 anos. Vítima de leucemia, ele se foi com a idade de 42. Aliás, diga-se de passagem, muitas vezes é uma sensação meio estranha pensar que, hoje, aos 44, eu já superei o tempo que ele teve de vida...
Mas o quanto quero contar não diz respeito a isso, mas ao fato de eu não o ter visto morto, ao menos não da maneira usual... Naquela sexta-feira - ele morreu de manhã bem cedo e foi enterrado no mesmo dia -, certamente abalada ao extremo, minha mãe fez a opção de não me levar ao velório. De todo modo, lembro-me bem de momentos do enterro, desde quando seguíamos o carro que transportava o caixão até a chegada ao cemitério e tudo mais... Havia muita gente e é claro que todos me davam muita atenção...
Foi quando ocorreu uma cena de que jamais me esqueci... O caixão havia sido levado para o interior da capela que há dentro do cemitério e as pessoas se aglomeravam ali. Meu avô e minha avó, os pais do meu pai, aproximaram-se de mim discutindo algo, e ele então me perguntou... "Você quer ver seu pai?" Ou seja, decerto houve uma última oração ali na capela do cemitério em que o caixão foi aberto ainda uma vez, e eles devem ter questionado entre si se eu devia ou não ser levado a ver o corpo. Contudo, assustado de um medo que até hoje não sei bem explicar, respondi que não, que eu não queria. Meu avô, por óbvio bom senso, não insistiu, e assim foi. Lembro-me, por fim, de que tampouco acompanhei a condução do caixão até o túmulo. Não assisti ao sepultamente propriamente dito. Fiquei com minha mãe ali próximo da capela, que dá de frente para a entrada principal do cemitério, até que as pessoas, algum tempo depois, começaram a voltar e novamente me davam atenção... Estava feito...
Pois bem... Os anos se passaram, eu cresci, fui compreendendo melhor a questão da morte e tudo mais, e, por algum motivo, aquela cena sempre me voltava à mente... De certa forma, eu agora ficava achando que devia tê-lo visto morto, que gostaria, até, de o ter visto... Hoje eu sei, minha terapeuta me explicou, que, do ponto de vista da psicologia, é importante, quando perdemos um ente querido, sobretudo tão próximo quanto um pai, que vejamos o corpo, que acompanhemos todo o ritual do enterro e tudo mais, já que isso ajuda muito em algo por que precisamos passar que se chama "elaborar o luto". Se perdemos alguém muito próximos e não vemos o corpo, fica um pouco mais complicado, segundo ela me explicou, esse processo tão complexo quanto necessário... É meio como se a pessoa tivesse sumido sem uma explicação, sem nenhum marco que de algum modo simbolize aquele fato...
Mas algo extremamente surpreendente, de todo inesperado, impensável quase até, e que é afinal o cerne desta história, mudaria tudo quase 31 anos depois...
Era início de 2005. Naquela manhã recebemos com extremo susto a notícia do falecimento de uma tia minha, cunhada do meu pai, num terrível acidente. Como minha mãe não se encontrava em São Paulo, coube a mim representar-nos naquele momento. Assim, dirigi-me ao velório, onde permaneci junto a meus primos e outros parentes e amigos até a hora do enterro, no mesmo túmulo da família de meu pai. Eis que, quando chega o momento, já com uma pequena multidão ao lado do sepulcro, aproxima-se de mim uma prima, a quem, diga-se de passagem, eu não via havia muitos anos e me diz... "Gugu, deixe eu te dizer... Como o túmulo estava lotado, o mais antigo teve que ser exumado e, no caso, era o seu pai..." Até aí, tudo bem! Não senti nada! Achei absolutamente normal...! Contudo, seguindo, ela me aponta uma caixa de formato retangular, com mais ou menos uns dois palmos de altura por três de largura, colocada provisoriamente sobre o túmulo vizinho, e diz... "Inclusive os ossos dele estão ali! Ainda não foram encaminhados para o ossário...!" Bom... Estremeci na hora, né? Súbita e inesperadamente, 31 anos depois, ali estava afinal a chance de eu fazer aquilo que estranhamente tanto me incomodara por eu não ter feito...! Era só abrir aquela caixa e eu poderia ver os ossos de meu pai!!!
Duas coisas vieram-me então à mente... Uma foi a idéia de que tal coisa pudesse de algum modo me fazer mal, não apenas naquele momento como no porvir... A outra foi um certo constrangimento... O que pensariam, afinal, todos os que estavam ali se me vissem fazer aquilo? Julgar-me-iam talvez alguém de extrema morbidez...? O sepultamento da minha tia seguia, eu acompanhava a aflição de meus primos que haviam perdido a mãe, mas não conseguia tirar os olhos da caixa... Dúvida! Fazer ou não fazer aquilo?
Solucionei a segunda questão permanecendo ali após o enterro estar concluído. As pessoas começaram a se dispersar e logo estavámos apenas eu e os funcionários do cemitério que certamente a seguir levariam a caixa para onde houvesse de ser... Senti então que era um momento único! Era então ou nunca! 31 anos depois eu tinha a chance de fazer o que por medo não fizera e que sempre me incomodara por eu não ter feito...! Enfim decidido, fui à caixa! Colado nela com durex, observei, um papel com o nome de meu pai escrito. Puxei a tampa - era das que se encaixam por cima lateralmente, como as daquelas típicas caixas de giz - e a abri! Afinal, dentro de um plástico que em seguida também abri, lá estavam, acinzentados mas todos aparentemente intactos, nas minhas mãos e diante dos meus olhos, os ossos do meu pai! Quase 31 anos depois daquele 13 de julho, eu o estava vendo morto...!
Alguns dos poucos amigos com quem cometei a passagem chamaram-me de louco. Disseram que eu jamais deveria ter feito aquilo, que não me faria nada bem. Enganaram-se. Muito ao contrário, senti-me leve, quase aliviado por tê-lo feito! Minha terapeuta está certa! A danada, aliás, está sempre certa! Fiz algo que precisava fazer, fechei um ciclo, dei a mim mesmo uma resposta! Acabei, 31 anos depois, de elaborar o meu luto! E mais... Tive mais uma grande lição, meus amigos, de como esta vida pode ser sempre surpreendente...!
Gugu Keller