É sempre uma experiência mágica revisitar a obra de grandes poetas e é interessante como no que tange à sua compreensão tudo parece ter seu devido tempo para cada um de nós...
Exemplificando, apenas com a morte de Renato Russo em 1996 e a subseqüente divulgação de que ele tinha aids e o sabia desde 1989, foi que percebi que, na canção "Feedback Song For a Dying Friend", do álbum "As Quatro Estações", justamente daquele ano, 89, ele se dirigia a Cazuza.
Pois bem... É desse mesmo álbum um verso que meio que "me incomodou" por mais de vinte anos, até que, no último fim de semana, como que num estalo, eu finalmente o compreendi...
Trata-se de um verso, na verdade o último verso, da canção "Há Tempos", a que abre o álbum... Sendo extremamente conhecida, um dos hinos da Legião Urbana, alguns trechos dela soam qual verdadeiras epígrafes para todos nós, como "Parece cocaína mas é só tristeza", ou "Há tempos são os jovens que adoecem", ou, ainda, e, talvez, sobretudo, "Disciplina é liberdade". Contudo ela termina com um verso estranho, aparentemente deslocado do restante da letra, cuja compreensão me fugiu durante esses mais de vinte anos, até que, como eu disse, de repente, e até meio de surpresa, no último fim de semana, afinal me surgiu...
Diz o verso... "E ela disse... - Lá em casa tem um poço mas a água é muito limpa!"
Sim, por mais de vinte anos matutei a respeito. Fundamentalmente, não conseguia entender o nexo da palavra "mas", a idéia do adversativo, indicando ser um problema que a água seja limpa, o que para mim não parecia fazer nenhum sentido. Por outro lado, sem saber por quê, eu não conseguia deixar o questionamento de lado. De algum modo minha intuição me dizia que havia um significado relevante ali. Alguma coisa intencional e caprichosamente oculta.
Pois bem... Vinte e um anos depois, enfim compreendi... Refletindo toda a angústia que ele devia estar sentindo naquele momento tão difícil, como aliás está bem evidente no resto da canção, e também em todo o álbum, e mais ainda nos que o seguiriam, esse verso contém uma idéia suicida... Sim, isso mesmo! Agora me parece claro! É uma especulação sobre como, de que maneira se suicidar...! O poço, que já traz em si a gigantesca imagem simbólica de ter no seu fundo o ápice do desespero, o máximo do sofrimento, da dor, da derrota, seria, também, não raro se vê acontecer, um bom local/meio para alguém dar cabo da própria vida...! Mas este de que se fala não, conclui a canção! Não! Este não serve! Por que? Porque sua água é limpa demais! Sua água não é turva o bastante para que se o considere apropriado para um suicídio! Interessante, não?
E reforça-me a idéia, amigos, uma outra canção, do ábum seguinte, "V", também bastante conhecida, "Vento no Litoral"... Aqui, desta vez quase que de modo escancarado, ele novamente fala de suicídio, e novamente especula cometê-lo através da água, agora não num poço mas no mar... Possivelmente lhe fosse uma espécie de idéia recorrente, sobretudo diante do decerto incomensurável pavor daquele diagnóstico, ainda muito pior naqueles dias do que hoje...
Onde quer que você esteja, Renato Russo, e como você mesmo dizia, "força sempre"! Entre nós tua maravilhosa obra jamais te deixará morrer!
É claro que outras pessoas podem ter interpretações diversas sobre o último verso de "Há Tempos"... De antemão já digo que respeito-as todas e até gostaria muito de as conhecer...!
Gugu Keller